A economia europeia está prestes a atravessar uma transformação profunda e silenciosa.
Já imaginou um produto que, ao passar o smartphone por cima de um código QR, revela tudo: o material de que é feito, se pode ser reparado, como se recicla, se está em conformidade com as normas de segurança e até o nome do fabricante.
Esse é o Passaporte Digital de Produto (PDP) — uma ficha de identidade digital que será obrigatória para vários produtos vendidos na União Europeia, com aplicação faseada a partir de 2026. Previsto no Regulamento para a Conceção Ecológica de Produtos Sustentáveis (ESPR – 2024/1781), o PDP será uma peça central na estratégia europeia de transição para uma economia mais circular, resiliente e sustentável.
O seu propósito é ambicioso: prolongar a vida útil dos produtos, melhorar a eficiência no uso de recursos, reduzir o desperdício e facilitar a tomada de decisões conscientes por consumidores, investidores e operadores económicos.
O PDP representa uma mudança estratégica na forma como a Europa pretende organizar o seu mercado interno: com mais transparência, mais rastreabilidade e mais informação disponível nas cadeias de valor globais.
Esta mudança começa por setores com maior impacto ambiental e com maior potencial de circularidade, de acordo com a Comissão Europeia.
Entre os produtos abrangidos nas primeiras fases, encontram-se: ferro, aço e alumínio; têxteis (vestuário e calçado); mobiliário (incluindo colchões); pneus; detergentes, tintas e lubrificantes; produtos químicos; dispositivos eletrónicos e TIC. Mais do que uma exigência legal, o PDP é um instrumento estratégico para reforçar a competitividade das empresas europeias.
These products will be the first to incorporate a digital passport with standardized and verifiable data, accessible via digital interfaces such as QR codes.
A implementação será feita em fases, com prazos específicos para cada categoria de produto. A tabela abaixo resume o plano de adoção definido pela Comissão Europeia:


Mais do que uma imposição regulatória, o PDP representa uma mudança estratégica na organização do mercado europeu.
A aposta na transparência, rastreabilidade e digitalização da informação posiciona a Europa como pioneira na regulação ambiental com impacto industrial.
Ao sistematizar dados sobre sustentabilidade dos produtos, o PDP abre caminho para novos modelos de negócio circulares, como leasing, remanufactura, reparação ou reutilização, e facilita a comunicação com consumidores mais exigentes e com os investidores institucionais focados em critérios ESG (Environmental, Social and Governance) .
A evidência científica indica que as empresas que integram práticas de ecodesign, rastreabilidade e gestão digital de ciclo de vida conseguem reduzir custos operacionais, adaptar-se mais rapidamente às regulamentações e fortalecer a confiança dos seus clientes.
Estudos recentes apontam ainda que a antecipação de tendências regulatórias, como o PDP, acelera a inovação em produto e atrai segmentos de mercado mais valorizados. A vantagem competitiva não está apenas em cumprir a lei, mas em liderar a sua implementação.
Contudo, a implementação generalizada do PDP levanta desafios significativos.
O primeiro é tecnológico: como garantir que os sistemas de informação são interoperáveis, seguros e acessíveis a toda a cadeia de valor.
O segundo é organizacional: muitas PME ainda não têm as capacidades digitais, recursos humanos ou sistemas de qualidade para responder a estas exigências.
O terceiro é geopolítico: ao centralizar dados em infraestruturas digitais comuns, a Europa afirma a sua soberania tecnológica — mas também enfrenta o risco de criar assimetrias entre empresas com diferentes graus de preparação digital.
Por outro lado, a generalização do PDP pode criar um mercado de soluções tecnológicas e serviços de apoio à transição sustentável. Desde plataformas de gestão de ciclo de vida até software de rastreabilidade por blockchain, há uma nova vaga de startups e fornecedores a emergir neste ecossistema. Para estas empresas, o PDP é uma oportunidade de posicionamento europeu e internacional.
O impacto do Passaporte Digital de Produto vai além do plano técnico. Ele inaugura uma economia de dados dos produtos, em que o acesso à informação será condição essencial para participar no mercado.
Quem definir os standards, a arquitetura digital e os protocolos de interoperabilidade terá capacidade de moldar as regras de concorrência nos próximos anos. Neste sentido, o PDP é também um instrumento de diplomacia económica e de afirmação do papel da Europa como líder regulatória global.
As empresas portuguesas e europeias não podem encarar o PDP como mera burocracia. Trata-se de um novo idioma de mercado, quem não o falar, corre o risco de ser excluído das cadeias de fornecimento mais exigentes e dos contratos públicos europeus.
Os líderes empresariais mais atentos estão já a mapear os fluxos de informação dos seus produtos, a capacitar equipas técnicas e a desenvolver alianças com parceiros tecnológicos. Os restantes terão de recuperar terreno num curto espaço de tempo.
O futuro será digital, circular e transparente.
O Passaporte Digital de Produto não é o fim — é o início de uma nova era em que a sustentabilidade será mensurável, rastreável e verificável..
Uma era onde os dados serão tão valiosos como os recursos materiais.
E onde as empresas que souberem antecipar esta realidade poderão conquistar posições estratégicas no mercado global.
Escrito por Beatriz Santos
*Foto da capa de Mitya Ivanov no Unsplash